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ESSA NOSSA DITOSA LÍNGUA XV
As manhas e as artimanhas da língua portuguesa – 2a parte

Peter Koj

Mas o campo onde se trava a luta decisiva do domínio da língua portuguesa é o seu vocabulário. Se estou bem informado, o português é, depois do inglês, a língua mais rica da Europa. O inglês deve a sua riqueza de mais de 600 000 palavras à sua origem dupla, nomeadamente germânica e românica, o que levou a muitos casos de expressões sinónimas ou quase-sinónimas (p.ex. liberty e freedom). A riqueza do vocabulário português prende-se com o facto de ter, para determinados objectos ou fenómenos, uma palavra especial que não tem correspondência em qualquer outra língua. A título de exemplo, gostava de citar a “caruma” que é uma “agulha de pinheiro caído pelo chão”. Ou o verbo “escanhoar” que numa tradução para alemão deve ser parafraseado com várias palavras no sentido “fazer a barba com apuro”. Sabiam que no português existe uma palavra que designa “comichão que têm certos cavalos nos pontos que apertam o selim”. Infelizmente já não me lembro dessa palavra, mas na altura em que a encontrei e a mostrei ao meu professor particular, o Prof. José d’Encarnação, da Faculdade de Letras de Coimbra, este ficou boquiaberto. 1

Naquela altura andava empenhado numa verdadeira caça às palavras sinónimas e encontrei p.ex. mais de 20 expressões para “vadiar” (“andar aos cucos”, andar à malta”, “andar na vida airada”, “andar ao léu”, “andar na pândega”, “pintar os tectos ao Rossio”, “andar aos gambozinos” etc., etc.) mais de 30 sinónimos para “troça” ou “escárnio”, e número igual para “embriagar-se” ou “toldar-se”. Para “fugir” ou “debandar” encontrei 50 expressões e para todas as raças  de “patifes” ou “pessoas vis” contei mais de 60 termos técnicos. Os vários tipos de “sova” ou “tareia”, com a infindável lista dos golpes especiais como “bofetada”, “chicotada”, “paulada”, “piparote”, “sopapo” etc. somam quase cem inscrições. Este número é ultrapassado apenas pelas 130 designações que encontrei para uma pessoa estúpida.

Mas, por favor, não se deixem levar por estes números impressionantes e não tirem conclusões prematuras como: “Os portugueses são uma banda de pacóvios e bandidos. Não fazem nada senão embriagar-se, e quando apanham uma borracheira, fazem pouco dos outros ou até batem neles. Depois é que dão aos calcanhares”. Isso seria uma equação demasiadamente simplista entre  língua e  mundo, quer dizer entre significante e significado. Mas está fora de questão que uma língua reflecte a maneira específica de pensar e viver  do povo que dela se serve. Cada palavra tem a sua história, a sua própria carga emocional e social, as suas conotações e associações de ideias que não se aprendem  através de livros e dicionários , mas sim no contexto vivido do dia-a-dia dum povo. Por exemplo, as expressões portuguesas relacionadas com o tempo demonstram uma atitude totalmente diferente da dos alemães, povo que gosta de planear com muita antecedência e precisão. Os portugueses, na sua esmagadora maioria, preferem deixar as coisas em aberto sem fixar uma hora certa. Quando um português promete aparecer “pelas oito” – ou ainda pior – “lá pelas oito”, com certeza não aparecerá antes das nove ou até das dez. Ou quando, na despedida, se diz “Até amanhã!”, isso não implica necessariamente que a gente fique combinada para o dia seguinte. Aliás, muito temido entre os estrangeiros é o chamado “minuto português” que pode ultrapassar de longe os 60 segundos originais. Porém, a expressão mais traiçoeira, mas muito cómoda e por isso tão em voga em Portugal, é a palavra “oportunamente”. Reparei nesse facto aquando da minha estadia em Portugal, o que levou o meu professor a publicar um pequeno artigo no Jornal da Costa do Sol. Mas qual não foi o meu espanto quando descobri esta palavra na decisão que o próprio Júri da Fundação Casa da Cultura de Língua Portuguesa me enviou. Foi mesmo um encontro de bons velhos amigos!

Um estrangeiro, que se debate com problemas linguísticos a este nível, já está numa linha muito avançada da conquista da língua. Mas o último reduto é a utilização correcta de expressões idiomáticas, sobretudo da gíria ou de calão. Mas cuidado! É um campo onde inúmeras armadilhas espreitam o estrangeiro desprevenido. Como me aconteceu quando eu, na minha função de sub-director da Escola Alemã de Lisboa, tive uma vez que admoestar uns alunos portugueses, aliás em presença duma colega minha, portuguesa e já de idade. E eu, todo ufano dos meus conhecimentos do português falado, empreguei a expressão “ter lata”, o que provocou na minha colega portuguesa espanto e admiração por eu conhecer uma palavra que nunca tinha ouvido dum alemão. Mas, por outro lado, censurou-me mais tarde por ter utilizado, perante os alunos, uma expressão destas. E assim fiquei outra vez no meu lugar, quer dizer, de estrangeiro que não dominava e respeitava os tabus relacionados com expressões populares ou da gíria. Outro alçapão em que tenho caído vezes sem fim  são “as mil e uma maneiras de se dirigir às pessoas” (esta é uma citação de Ilse Losa, escritora de origem alemã, mas radicada nesta cidade do Porto há mais de sessenta anos). São problemas como: Quem se trata por Senhora, quem por Dona, quem por Senhora Dona? Ou: Quem tem direito a ser chamado Sr. Doutor? Dá-me a impressão de que, mais de vinte anos passados desde a Revolução dos Cravos, quando todos eram amigos ou até camaradas, a situação se está tornando cada vez mais complicada.

Mas agora basta de choraminguices! A luta contínua para a aquisição do idioma português não significa só trabalho e sacrifício. É ao mesmo tempo uma experiência altamente positiva que não se pode exprimir melhor do que num provérbio proveniente, mais uma vez, da sabedoria inesgotável do povo português. Reza assim: “Saber muitas línguas é ser-se muitas vezes homem”.  Então, depois de ser homo teutonicus ou seja germanicus por nascença, homo britanicus, homo gallicus e homo cisalpinus ou seja italianus por opção, orgulho-me de me ter tornado também homo lusitanus. Nesta metamorfose, a aprendizagem da língua portuguesa tem tido um papel decisivo, porque, para mim, esta aprendizagem nunca foi um simples processo de tradução duma língua para outra, mas sim o abrir duma porta cada vez mais escancarada dando acesso a um mundo diferente do nosso, de pensar, de sentir, de reagir, enfim: de viver. No meu caso ajudavam imenso os sete anos vividos em Portugal. E, se pudermos acreditar nos biólogos que dizem que, de sete em sete anos, o nosso organismo se renova por completo, eu, em 1983, voltei para Hamburgo cem por cento português. Desde então, o meu organismo tem sido reciclado várias vezes em todos os sentidos. Mas estou convencido de que me ficou pelo menos uma costela portuguesa.

Exerto do texto lido na cerimónia de atribuição do Prémio (Universidade do Porto, 30 de Maio de 1996)


1 O Há pouco, encontrei-a outra vez: é a palavra “cangocha”. Parece que o mundo equestre deve ter muito mais desses termos específicos, como mostra p.ex. “tico” que quer dizer – pasme-se – “vício dos equídeos que poisam os dentes superiores na manjedoira ou outro objecto, parecendo que tomam ar” (Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa)




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Portugal-Post Nr. 15 / 2001