ESSA NOSSA DITOSA LÍNGUA XVII
Deixemo-nos überraschar
Peter Koj
Já resolveram
alguma vez palavras cruzadas em português? Na minha carreira de corpo docente
nunca encontrei tempo suficiente para me dedicar a esse lazer tão saudável
para a nossa massa cinzenta. Mas recortava e guardava sempre as palavras
cruzadas publicadas regularmente no “Jornal da Costa do Sol”, semanário, de
que sou fiel assinante, desde os fins dos anos sessenta.
E agora, já
aposentado, aproveito esse “tesouro” tentando resolver todas as manhãs,
antes de me dedicar às outras actividades, um problema de palavras cruzadas. E
quase sempre me vejo a braços com problemas inesperados e, às vezes,
desesperantes. Têm a ver, por um lado com a grande riqueza da língua
portuguesa (veja sobre esse tema o n.º VI desta série no “Correio Luso-Hanseático”
5). Essa tem um termo técnico bem preciso para uma determinada coisa e que é
desconhecido em outras línguas, p.ex. “raer” = “vassoirar o forno depois
de aquecido para a cozedura”, ou “siar” = “fechar as asas para descer
mais rapidamente” (a não confundir com “ciar” = “remar para trás” ou
“cear” = “comer uma refeição entre o jantar e a hora de deitar”). Por
outro lado, há verdadeiras chicanas, quando se pede uma palavra que não se
encontra em nenhum dicionário, muitas das vezes originária do vasto
mundo lusófono (como p.ex. “saá”, um pequeno macaco do Brasil e “um”,
uma árvore de Damão). E em último lugar, são as gralhas e os erros que,
infelizmente, abundam e que se opõem a uma solução rápida. Foi assim , no
outro dia, quando se pedia “praticar blefe” que eu achei estar confrontado
com outra gralha, pois o “Dicionário Prático Ilustrado” (o Lello), fiel
acompanhante das minhas viagens pela língua portuguesa, não o refere.
Mas no recém-publicado
“Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” da Academia das Ciências
de Lisboa (responsável: Malaca Casteleiro), encontra-se “blefe” como
brasileirismo tendo origem no inglês “bluff”. Nada mais fácil, dir-se-ia,
mas eu simplesmente não estava preparado para a ortografia deste termo “portinglês”.
Pois, como demonstrei na parte III desta série (n.º 3 do “Correio luso-hanseático”,
pp.8-11), as palavras importadas do inglês tentam, pela sua ortografia render o
som desta língua. A título de exemplo, citei “tichêrte” (=T-shirt),
“chute” (=shoot) ou “taparuer” (=tupperware, que muitos alemães, aliás,
pronunciam como se fosse uma palavra alemã). Por isso teria esperado a grafia
“blafe”, tal como em “pabe” (=pub). Será que tem a ver com a pronúncia
maneirista do inglês vitoriano, ainda praticado por representantes da velha
geração que, para “but” dizem [böt] em vez de [bat], para “cut” [köt]
em vez de [kat] e para “pumps” [pömps] em vez de [pamps]?
E, como em
outras expressões derivadas do inglês, existe também uma forma verbal: “blefar”,
a solução do meu problema. Esse verbo,aliás, já se encontra no “Grande
Dicionário da Língua Portuguesa” de Cândido de Figueiredo que é mais fiável
do que o dicionário de Malaca Casteleiro quando se trata de expressões
antiquadas ou arcaicas. Citem-se outros verbos derivados do inglês, como
“driblar” (< to dribble), “snifar” (< to sniff), “chutar”
(< to shoot) e “liderar” derivado de “líder” e não directamente do
verbo “to lead”, que dava “lidar” que já existe em português com outro
sentido).
Deve haver
outros verbos importados de línguas como o francês, espanhol, italiano ou até
alemão, mas só posso citar um exemplo duma comunidade muito restrita,
nomeadamente a da Escola Alemã de Lisboa, onde por brincadeira se dizia
“Deixemo-nos überraschar” (= surpreender). Que eu saiba, é da autoria do
linguista Manuel Luís Mendes Silva que gostava dessas expressões macarrónicas
e cujos dois compêndios “Português Contemporâneo” e “Português Língua
Viva” continuam a ser uma ajuda preciosa para quem aprenda ou ensine essa língua.
Mas deve haver mais. Deixemo-nos überraschar.
|
. |
|
Portugal-Post Nr. 18 / 2002
|
|